Walter Guandalini Junior


Direitos Humanos desde a Periferia: proposta de abertura para o diálogo

Um Diálogo
Este texto pretende propor um diálogo.
Un diálogo, como se sabe, implica em abertura para a comunicação entre realidades distintas, o que pressupõe não só o reconhecimento da existência de uma pluralidade de pontos de vista possíveis acerca da mesma realidade, mas também o reconhecimento da igual dignidade dessa pluralidade de pontos de vista. Sem esses dois pressupostos fundamentais não há diálogo possível; somente o eterno monólogo da consciência universal, que em vez de conversar se propõe a educar a alteridade, com o objetivo de devorá-la e reabsorvê-la na universalidade de sua identidade unitária. O diálogo sempre se apresenta, então, como desafio potencial: relativiza a universalidade de cada identidade pela afirmação da existência de identidades alternativas; coloca em risco as identidades dos interlocutores pela necessidade de reconhecimento de sua dignidade mútua; e assim promove também a relativização dos sentidos atribuídos ao mundo em que vivem essas identidades. Nunca é agradável submeter-se a esses riscos, mas é necessário corrê-los se desejamos nos dispor a efetivamente dialogar com o outro em sua integralidade.
Um risco desse tipo foi corrido por Montezuma durante o primeiro contato estabelecido entre os astecas e os europeus, e essa imagem representa bem a natureza do diálogo que se estabelece quando tentamos conversar sobre os direitos humanos. Um diálogo sobre os direitos humanos é um diálogo que se estabelece entre um Eu e um Outro, que o pensamento ocidental costuma apresentar sempre da mesma forma: da perspectiva dos direitos humanos a identidade de um homem europeu civilizado, branco, cristão, proprietário, burguês, heterossexual, que se dispõe a catequizar um Outro usualmente compreendido como o inverso de todos os adjetivos atribuídos ao Eu que ensina e monologa – bárbaro, negro, pagão, despossuído, selvagem, afeminado. 
Ao imaginar um diálogo dessa natureza em sua entrevista imaginária com Montezuma, Ítalo Calvino percebeu a enorme dificuldade que lhe é inerente: ela aparece já no início do diálogo, quando o entrevistador demonstra não saber sequer como se referir ao outro com quem busca dialogar.
EU – Majestade… Santidade!… Imperador! General! Não sei como vos chamar, sou obrigado a recorrer a termos que só em parte transmitem as atribuições de vosso cargo, apelativos que na minha língua de hoje perderam muito de sua autoridade, soam como ecos de poderes desaparecidos… Assim como desapareceu o vosso trono, no topo dos altiplanos do México, o trono de onde reinastes sobre os astecas, como o mais augusto de seus soberanos, e também o último, Montezuma… Mesmo chamar-vos pelo nome para mim é difícil: Motecuhzoma, parece que assim soava realmente o vosso nome, que nos nossos livros de europeus aparece diversamente deformado: Moteczuma, Moctezuma… Um nome que, segundo certos autores, significaria “homem triste”. Vós bem teríeis merecido este nome, vós que vistes ruir um império próspero e ordenado como o dos astecas, invadido por seres incompreensíveis, armados de instrumentos de morte nunca vistos. Deve ter sido como se aqui nas nossas cidades baixassem de repente invasores extraterrestres. Mas nós, esse momento, já o imaginamos de todas as maneiras possíveis: pelo menos, assim acreditamos. E vós? Quando começastes a compreender que era o fim de um mundo aquele que estáveis vivendo?
 
Paradoxalmente, o reconhecimento da impossibilidade do diálogo é o que promove a abertura para o diálogo real, sendo esta a única das entrevistas de Calvino em que o entrevistado também se esforça para ser compreendido pelo entrevistador, envolvendo-se efetivamente (e afetivamente) na conversa. Ao mesmo tempo, o “Eu” literário de Calvino assume explicitamente o partido do “Outro” Montezuma, identificando-se com as vítimas da conquista européia ao imaginar a possibilidade de uma história diferente a partir da resistência dos astecas ao exército de Cortés:
EU – Rei Montezuma, aquele era o primeiro verdadeiro encontro da Europa com os outros. O Novo Mundo fora descoberto por Colombo menos de trinta anos antes, e até então só se tratara de ilhas tropicais, aldeias de cabanas… Agora era a primeira expedição colonial de um exército de brancos, que encontrava, não os famosos “selvagens” sobreviventes da idade de ouro da pré-história, mas uma civilização complexa e riquíssima. E foi justamente nesse primeiro encontro entre o nosso mundo e o vosso – digo o vosso mundo como exemplo de qualquer outro mundo possível – que aconteceu algo irreparável. É isso que me pergunto, que pergunto a vós, rei Montezuma. Diante do imprevisível, demonstrastes prudência, mas também insegurança, tolerância. E, decerto, assim não evitastes ao vosso povo e à vossa terra os massacres, a ruína que se perpetua através dos séculos. Talvez bastasse vos opor resolutamente aos primeiros conquistadores para que a relação entre mundos diferentes se estabelecesse sobre outras bases, tivesse um outro futuro. Talvez os europeus, avisados da vossa resistência, tivessem ficado mais prudentes e respeitosos. Talvez ainda estivésseis em tempo de extirpar das cabeças européias a planta maligna que estava apenas brotando: a convicção de ter direito de destruir tudo o que é diferente, de pilhar as riquezas do mundo, de expandir pelos continentes a mancha uniforme de uma triste miséria. Então a história do mundo teria tomado outro rumo, compreendei, rei Montezuma, compreende, Montezuma, o que te diz um europeu de hoje, que está vivendo o fim de uma supremacia em que tantas extraordinárias energias se voltaram para o mal, em que tudo o que pensamos e realizamos convencidos de que fosse um bem universal traz a marca de uma limitação… Responde a quem se sente vítima como tu, responsável como tu. 
Como se percebe, a identificação com o outro não é mera comiseração; não há culpa sentimentalista, mas verdadeira interpelação do oprimido, considerado vítima, mas também corresponsável pelo massacre de um povo. A interpelação busca compreensão, mas também exige ação; pede contas a Montezuma, demandando-lhe que esclareça a inaceitável tolerância, quando era seu direito e seu dever liderar a resistência. 
Es preciso compreender que, ao fazê-lo, o Eu não fala em nome do opressor; a cobrança não se confunde com a barbárie, pois manifesta justamente o inconformismo solidário aos que sofrem a violência. No entanto, tampouco fala em nome das vítimas; ao as interpelar se posiciona como vanguarda, e exige delas a mesma atitude que o próprio Eu consideraria adequada, em face da agressão cometida. Recusando-se a assumir a voz da barbárie, mas incapaz de falar a língua do oprimido, o Eu só pode falar em nome do humanismo universal, da Civilização, que repudia toda forma de violência e a julga indistintamente, reprovando em nome do Homem o sangue derramado pelos homens:
EU – O sangue, Montezuma! Não me atrevia a falar-te disso, e és tu que o mencionais, o sangue dos sacrifícios humanos…
MONTEZUMA – De novo… De novo… Porque vós, ao contrário, vós… Façamos as contas, façamos as contas das vítimas da vossa civilização e da nossa.
EU – Não, não, Montezuma, o argumento não se sustenta, sabes que não estou aqui para justificar Cortés e os seus, decerto não serei eu que minimizarei os crimes que nossa civilização cometeu e continua a cometer, mas agora é de vossa civilização que estamos falando! Aqueles jovens deitados sobre o altar, as facas de pedra que esfacelam o coração, o sangue que esguicha em torno…
MONTEZUMA – E daí? E daí? Homens de todos os tempos e de todos os lugares se atormentam com um único objetivo: manter o mundo unido para que ele não desabe. Só a maneira varia. Nas nossas cidades, todas feitas de lagos e jardins, aquele sacrifício do sangue era necessário, assim como revolver a terra, como canalizar a água dos rios. Nas vossas cidades, todas feitas de rodas e gaiolas, a visão do sangue é horrenda, eu sei. Mas quantas vidas mais as vossas engrenagens trituram!
Como se pode ver, Montezuma resiste à acusação. Ao humanismo da interpelação universal resiste com a reivindicação da universalidade do local, recusando-se a se deixar pensar nos termos propostos pelo conquistador. Afinal, “homens de todos os tempos e de todos os lugares se atormentam com o objetivo de manter o mundo unido para que ele não desabe. Só varia a maneira como se realizam os sacrifícios de sangue necessários”. Restabelece, assim, a localidade específica do entrevistador europeu, recusando-lhe o título universal que pretendeu assumir ao interpelar o outro em nome do humanismo. Apesar do abraço acolhedor com que recebeu Cortés e o Eu simbólico que o entrevistava, é como se os seus corpos não se tocassem. O Eu e o Outro pertencem a realidades diferentes, e de uma diferença que não pode ser medida; o que impede o toque não é mera superioridade, mas essencial alteridade, distanciando dois mundos que jamais podem se encontrar.
MONTEZUMA – Sabia que não éramos iguais, mas não como tu, homem branco, dizes, a diferença que me paralisava não podia ser pesada, avaliada… Não era o mesmo que duas tribos do altiplano – ou duas nações do vosso continente –, quando uma quer dominar a outra, e é a coragem e a força no combate que decidem a sorte. Para lutar contra um inimigo é preciso mover-se no mesmo espaço que ele, existir no mesmo tempo que ele. E nós nos escrutávamos a partir de dimensões diferentes, sem nos tocar. Quando o recebi pela primeira vez, Cortés, violando todas as regras sagradas, me abraçou. Os sacerdotes e dignitários de minha corte cobriram o rosto diante do escândalo. Mas me parece que nossos corpos não se tocaram. Não porque o meu cargo me colocava mais acima de qualquer contato estrangeiro, mas porque pertencíamos a dois mundos que nunca tinham se encontrado, nem podiam se encontrar. 
Mas a impossibilidade de contato não impede o diálogo. O Eu e o Outro não deixam de se expor mutuamente, de se abrir à compreensão mútua, ao mesmo tempo em que, no diálogo, aprofundam a compreensão que têm de si mesmos. As limitações do Humanismo Universal e a aporia do impossível reconhecimento do outro em si são os pontos de partida de um inevitável diálogo, que se torna tão mais necessário e tão mais possível quanto mais fatal é o golpe que feriu de morte o Homem transcendental. O Homem só pode monologar; o diálogo pressupõe homens.
É o diálogo possível, entre homens possíveis, o tema do presente estudo. Somente homens de carne e osso podem ter dignidade pessoal.
Uma Genealogia do Sentido
Não há maior símbolo do humanismo universal do que a idéia de “direitos humanos”. Filha do Iluminismo, nasce na aurora da Modernidade como resultado da reflexão jurídico-política da burguesia emergente. Como explica António Manuel Hespanha, além do contexto de racionalismo que caracteriza o Renascimento e o Iluminismo, o desenvolvimento da teoria dos direitos humanos não deixa de ter relação com o fato de, pela primeira vez, ter sido quebrada a unidade religiosa da Europa, tendo os europeus entrado em contato com povos totalmente alheios à sua tradição religiosa. Segundo o autor, esses fatores tornavam necessário um direito universal que pudesse valer independentemente da identidade de crenças, o que faz com que o seu fundamento passe a residir em valores laicos, passíveis de serem encontrados pela atividade racional do homem. 
Por outro lado, a reivindicação do individualismo, que encontra na essência irredutível do humano o único fundamento possível da moral, do direito e da justiça (noção cristalizada na teoria da razão prática kantiana), também contribui imensamente para a crítica dos direitos corporativos e das ordens jurídicas totalizantes medievais, desconstruindo-os para colocar o homem no centro da ordem jurídica moderna. Mas não se trata de um homem concreto, histórico, de carne e osso; para poder ser tomado como fundamento de uma ordem jurídico-política com pretensões universalizantes, esse homem deve ser transcendentalizado, retirado do mundo, e substituído por uma categoria apta a dar conta da universalidade típica das reivindicações da burguesia nascente: o sujeito. 
A constituição da subjetividade moderna remete ao pensamento de filósofos como René Descartes (1961) e Immanuel Kant (1999). Com efeito, as reflexões realizadas por Descartes simbolizam o surgimento do racionalismo moderno, momento a partir do qual se considera que a razão, sozinha, é capaz de encontrar a verdade. A partir da reflexão cartesiana a busca da verdade se torna independente da ação do homem sobre si mesmo, podendo ser realizada unicamente com base em sua atividade racional, por meio de um método impessoal passível de ser utilizado por todo e qualquer sujeito. Desse modo, o fundamento do pensamento filosófico deixa de ter um substrato teológico (espiritual), e a descoberta deste eu pensante inaugura uma nova forma de se fundamentar a filosofia e o conhecimento.
Também o pensamento de Kant desempenha um papel fundamental no processo de constituição da subjetividade moderna. Ao questionar a possibilidade do conhecimento – como é possível conhecer? – e a atitude moral do sujeito – o que devo fazer? –, Kant afirma que o conhecimento está vinculado a condições presentes no próprio sujeito, e que a razão que desvenda o conhecimento é autônoma para determinar os princípios éticos que irão conduzir a vida do indivíduo. A autonomia da vontade em Kant se manifesta nessa possibilidade de o homem estabelecer para si, de forma livre e racional, os princípios éticos que irão reger sua vida – “a autonomia da vontade é a qualidade que a vontade tem de ser lei para si mesma”.
Assim, o panorama estabelecido pelo pensamento moderno apresenta o sujeito como o fundamento da vida em sociedade, da organização política e do conhecimento, atribuindo-lhe um conjunto de características que possibilitam a sua tomada como alicerce da nova ordem social: universalidade, individualidade, autonomia e abstração. 
Trata-se, em primeiro lugar, de um sujeito universal porque nesta categoria se encaixam todos os seres humanos, sem espaço para particularismos de ordem racial, sexual, étnica ou cultural. Ao mesmo tempo, é um sujeito individual porque o homem é considerado como ser concreto e independente, com exigências próprias, detentor do direito de sua auto-satisfação. É também um sujeito autônomo porque livre e capaz para pensar e agir por si mesmo, para deter direitos e exercê-los. Finalmente, esse sujeito possui um caráter abstrato, uma vez que todo e qualquer homem empírico pode ser enquadrado na categoria “sujeito”, tendo a capacidade de – por intermédio de um método racional (e impessoal) – atingir a verdade sobre as coisas, e de estabelecer de maneira livre e racional os princípios éticos que irão reger sua própria vida. 
Evidencia-se, então, a crença em uma essência do sujeito, capaz de garantir a sua emancipação a partir de uma ação guiada pela racionalidade e capaz de suprimir as desigualdades impostas pelo regime anterior. Assim, a racionalidade política da modernidade aponta para o reconhecimento de que apenas se possa falar em “direitos” na medida em que haja um sujeito capaz de exercê-los, tendo em vista ser a sua vontade livre e racional o único fundamento da sua existência. 
Ao mesmo tempo, as características do sujeito moderno deformam irremediavelmente as novas concepções de direito, que recebem as suas características de modo a se adaptar ao novo fundamento teórico. Em primeiro lugar, a universalidade do sujeito se manifesta em uma concepção universalista dos direitos essenciais, válidos para toda a humanidade na medida em que traduzem uma certa concepção do que seja a essência do humano. Nascem, assim, os “direitos naturais” à liberdade, à propriedade, à igualdade, vistos como a tradução última dos aspectos mais essenciais da dignidade humana. Além disso, o seu individualismo faz com que apenas se possam conceber direitos atribuíveis a sujeitos individuais, o que dá origem à noção moderna de “direitos subjetivos” a serem opostos a quem viole a esfera de individualidade livre. No mesmo sentido, a autonomia se manifesta em uma concepção voluntarista dos direitos subjetivos, atribuindo-se a sua titularidade apenas a quem os detenha efetivamente – não sendo mais possível falar-se em ordens jurídicas objetivamente válidas ou harmonias naturais independentes da vontade subjetiva (embora se continue protegendo a essência do humano com a afirmação dos “direitos da personalidade”). Por fim, a abstração do sujeito permite uma correspondente abstração de todos os novos direitos criados, atribuíveis a quem quer que seja, independentemente de cultura, religião, etnia ou situação política, econômica e social. 
Surge, assim, um direito natural racionalista, que indica a natureza humana como sua única fonte e aponta a razão como sua via cognoscitiva. É esse direito, tal como pensado originalmente por Grotius, Hobbes, Locke, Rousseau, Spinoza, Puffendorf, Thomasius etc., o fundamento último das construções mais contemporâneas sobre direitos humanos, que inevitavelmente tomam a mesma concepção transcendental de subjetividade como alicerce de suas teorizações.
Percebe-se que a própria idéia de um conjunto de direitos universalmente válidos não pode ser considerada simples fruto do desenvolvimento da razão humana. Trata-se de uma construção histórica, que reflete a particularidade do contexto vivido pela civilização européia no período do Iluminismo e das revoluções políticas promovidas pela burguesia, que progressivamente ocupava a posição de classe economicamente dominante. Como explica Michel Foucault, não há um “ser-em-si” do sujeito. Ele é fruto de uma história recente, resultado de determinadas premissas históricas que tornaram possível a sua constituição – o sujeito não é universal no tempo e no espaço; ele tem uma história.
Essa circunstância faz com que não consigamos compreender a natureza das concepções modernas de subjetividade, senão como manifestação conceitual de um duplo empírico-transcendental: parte-se de um sujeito empírico, realmente existente, para transcendentalizá-lo, constituindo uma abstração que se torna padrão de referência e fundamento de compreensão do próprio sujeito empírico. O sujeito se torna, assim, simultaneamente objeto e sujeito de conhecimento; ele é o empírico que pode ser conhecido e o transcendental que tem a capacidade de compreendê-lo. O saber obtido acerca do homem empírico é colocado acima dele e do mundo, o define, o transcendentaliza, e o abstrai em uma categoria transcendental e universal: o Sujeito. 
Dessa forma, o homem é explicado a partir do próprio homem; não do homem de carne e osso, mas sim de um Homem trans-histórico, transcendental. Este Homem trans-histórico, contudo, não passa de uma abstração do homem empírico, que não é e nem pode ser natural e universal, pois é, em última instância, um homem que foi construído historicamente, resultado das inter-relações entre as diversas formas de saber-poder de uma episteme historicamente vigente. 
Toma-se, assim, um homem particular, historicamente existente (o homem europeu, branco, cristão, burguês dos sécs. XVII e XVIII), como padrão de universalização a partir do qual será construída uma essência do humano, o que permite que ele seja tomado como referência para todos os povos e culturas, de todos os momentos históricos. E o mesmo se faz com os direitos atribuídos a esse sujeito; construídos com base nas características do homem particular do Ocidente Moderno, estendem a todas as demais culturas as concepções de juridicidade que lhe são próprias, considerando “humanos” um conjunto de direitos que é, na melhor das hipóteses, “europeu” e “moderno”. 
Uma forma de pensamento como essa gera graves conseqüências. Na medida em que se eleva a realidade específica de uma cultura a padrão universal de humanidade, cria-se uma forma de opressão política e cultural, impondo-se a povos de outras culturas o padrão específico tomado como universal, e julgando-se-as por esses mesmos critérios. A concepção impede, assim, o diálogo intercultural e dá origem a um pernicioso etnocentrismo, que tende a considerar racionais e civilizadas as concepções de juridicidade próprias dos povos ocidentalizados, e julgar como bárbaras e inadequadas as práticas jurídicas e concepções de dignidade pessoal desenvolvidas por outras culturas distantes no tempo e no espaço. Promove, então, uma violenta opressão simbólica, na medida em que não reconhece o direito de outras culturas de manifestar, em sua própria linguagem, as suas concepções de juridicidade e moralidade.
Percebe-se tal etnocentrismo claramente quando se observa o conteúdo dos direitos humanos construídos a partir do sujeito transcendental: direitos à liberdade (política), à igualdade (formal) e à propriedade (privada) são o fundamento primeiro do direito universal, que assim reflete as concepções específicas de organização social e juridicidade européias. Mesmo o processo de progressiva expansão dos direitos humanos reflete o etnocentrismo, tanto ao incorporar apenas aqueles novos direitos construídos pela própria tradição ocidental moderna (ao trabalho, à igualdade econômica, ao meio-ambiente), quanto ao lhes atribuir um estatuto inferior e meramente propositivo em face dos “direitos humanos de 1ª geração” – que não precisam ser adiados para o futuro, na medida em que não dependem de prestações positivas para a sua concretização (embora a propriedade privada, a igualdade formal e a liberdade política apenas possam ser garantidas com as prestações positivas da segurança pública e do Judiciário).
No entanto, não é apenas no conteúdo que se observa o etnocentrismo dos direitos humanos. Se assim fosse, bastaria incorporar novos direitos, de outras culturas, para que fosse resolvido o problema. Ocorre que a teoria dos direitos humanos padece de etnocentrismo também quanto à sua forma, na medida em que não é capaz de conceber a juridicidade fora da atribuição da titularidade de um conjunto de direitos subjetivos a um ser humano dotado de todas as características que definem o sujeito moderno. Despreza, assim, concepções de juridicidade independentes do homem e da titularidade de direitos passíveis de exercício, obstruindo a manifestação de noções evidentemente jurídicas de outras culturas que propõem diferentes princípios organizadores de suas sociedades – como as noções de harmonia, ordem natural, respeito ao dever etc.
A rejeição de concepções de juridicidade e dignidade alheias às que fundamentam essa perspectiva nos impede de reconhecer ao humano titular desses direitos a universalidade que costuma lhe ser atribuída. Afinal de contas, quem é esse sujeito racional e autônomo, individual e abstrato a quem se atribuem direitos tão essenciais quanto os de propriedade, liberdade, igualdade e vida? A representação pictórica da Declaração de Direitos parece indicar com clareza: a monarquia que se liberta dos grilhões da tirania; a imagem angelical de um sujeito etéreo, flutuando nos céus com o cetro do poder da vontade; a razão universal personificada no Olho da Providência, que tudo vê e permanentemente zela pelo bem dos indivíduos.
A própria arte europeia nos recorda, contudo, que na realidade empírica a subjetividade humana pode se manifestar de outras formas. E quando essas formas entram em conflito fica mais difícil identificar, em meio ao sangue e à lama, quem é o Homem a ser protegido pelos direitos humanos universais: o exército de Cortés que massacra os habitantes indígenas de Teocalli, ou os bárbaros astecas nus, que exercem com suas clavas macuahuitl, contra o civilizador europeu, a mesma violência que praticam contra si mesmos nos sacrifícios humanos que realizam?
 
 
Déclaration des droit de l’homme et du citoyen, Jean-Jacques-François Le Barbier (1789)
 
Invasão de Teocalli por Cortés e suas tropas, Emanuel Leutze (1848)
 
 
Em meio a tantas dúvidas uma certeza nos parece inquestionável: o sujeito que os iluministas tinham em mente ao construírem a noção universal de direitos humanos não incluía as representações antropozoomórficas de subjetividade humana encontradas na religiosidade asteca pré-colonial.
 
É verdade que os direitos humanos também têm sido utilizados como elemento da luta política emancipatória, inclusive por povos que não compartilham das premissas culturais que deram origem à concepção, e mesmo contra as próprias pretensões hegemônicas do ocidente. Perspectivas teóricas e políticas comprometidas com o anticolonialismo continuam a sustentar a utilidade da concepção na luta emancipatória, defendendo a sua instrumentalização em circunstâncias específicas quando se mostrem úteis, a sua relativização em perspectiva multicultural ou a sua tomada como senso comum a viabilizar um diálogo intercultural de direitos.
Apesar da boa vontade dessas perspectivas, contudo, parece excessiva a ingenuidade de acreditar que possamos nos apoiar no principal suporte conceitual do universalismo, do colonialismo e do imperialismo sem termos nossas próprias demandas e nossa própria subjetividade instrumentalizadas pelo universalismo, pelo colonialismo e pelo imperialismo. Afinal, formular em nome dos direitos humanos universais as demandas locais por reconhecimento, dignidade e libertação implica em ressignificar esse conjunto de demandas locais como demandas universais – o que, por sua vez, implica em promover a reabsorção do homem empírico de carne e osso no homem transcendental da identidade universal. Não é possível expressar a pluralidade em uma linguagem que somente reconhece o Um.
Dessa forma, o trabalho não deve ser dedicado a promover a tradução das demandas locais na linguagem dos direitos humanos universais, nem o objetivo deve ser a reinserção da pluralidade na unicidade do sujeito transcendental; o que devemos buscar é a superação do monólogo etnocêntrico em prol de um diálogo multicultural, que se traduza em maior abertura para o outro e maior compreensão de nossas próprias particularidades históricas.
 
Novos Sentidos
Se são muitos os sentidos de subjetividade, e se são muitas as concepções de dignidade pessoal, de que serve a bússola dos direitos humanos, nesse mundo de muitos pólos que se atraem e se repelem? Como poderia nos guiar a sua agulha fixa a apontar o norte, quando há tantos nortes quantas são as culturas participantes do debate? Ainda que se reconheça que a teoria dos direitos humanos é apenas a linguagem específica do Ocidente moderno, com a qual somos obrigados a dialogar na qualidade de “ocidentais” (embora “periféricos”), não há qualquer justificativa para a sua manutenção como língua franca do diálogo geral; a bem da verdade, nem mesmo no interior da própria cultura ocidental, que há pelo menos cinqüenta anos tem enfrentado a crise do sujeito autônomo e racional na busca de novos fundamentos para a ação política e a luta por justiça.
É claro que se compreende plenamente a apresentação das reivindicações de culturas oprimidas em termos de direitos humanos; como já sabia o Montezuma de Calvino, “é preciso mover-se no mesmo espaço que o inimigo para lutar contra ele”, e a vítima acuada vai sempre se utilizar da arma mais próxima para se defender, como puder, da agressão. No entanto, é dever do teórico comprometido com a emancipação a construção de uma abertura para o novo, com a criação de novos espaços para a produção de novos instrumentos que possam ser utilizados pelas vítimas para a sua autoproteção. E, de preferência, que não sejam os instrumentos simbólicos do próprio agressor, mas armas produzidas pelos próprios interessados, a partir de sua linguagem, de sua visão de mundo e de sua própria concepção de resistência política e dignidade pessoal. 
A luta não é mais travada com armas, pela força; no mundo pós-colonial a verdadeira batalha ocorre no nível da cognição, pelo poder de pensar a si mesmo e ao outro, constituindo os seus próprios significados com liberdade. A guerra é simbólica, pois quem pensa o outro domina a sua essência, o enquadra em um padrão e determina a sua posição no quadro de sentido vigente. Também tinha consciência disso o Montezuma de Calvino:
MONTEZUMA – Vês como te contradizes, homem branco? Matá-los… Eu queria fazer algo ainda mais importante, fazê-los entrar na ordem dos meus pensamentos, assegurar-me da verdadeira essência deles, deuses ou demônios malignos, pouco importa, ou seres como nós, sujeitos a vontades divinas ou demoníacas, em suma, fazer deles – de seres inconcebíveis que eram – algo em que o pensamento pudesse se deter e pudesse influenciar, então, só então, poderia tê-los feito meus aliados ou meus inimigos, reconhecido-os como perseguidores ou como vítimas. 
EU – Para Cortés, ao contrário, estava tudo claro. Esses problemas, ele não se colocava. Sabia o que queria, o espanhol. 
MONTEZUMA – Para ele e para mim era igual. A verdadeira vitória que ele se esforçava em conseguir contra mim era esta: pensar-me.
EU – E conseguiu?
⦁ MONTEZUMA – Não. Pode parecer que tenha feito de mim o que quis: enganou-me muitas vezes, pilhou meus tesouros, usou minha autoridade como escudo, enviou-me para morrer apedrejado por meus súditos: mas não conseguiu ter a mim. O que eu era ficou fora do alcance de seus pensamentos, inatingível. Sua razão não conseguiu envolver minha razão em sua rede. É por isso que voltas a me encontrar entre as ruínas do meu império – dos vossos impérios. É por isso que vens interrogar-me. Depois de mais de quatro séculos de minha derrota, não tendes mais certeza de haver-me vencido. As verdadeiras guerras e as verdadeiras pazes não ocorrem na terra, mas entre os deuses. 
 
Mas se há uma guerra simbólica, é necessário avaliar quem está conseguindo pensar a quem. Quem estabeleceu os termos do pensamento; quem estabeleceu as condições em que o diálogo se faz possível. Nos últimos séculos a guerra simbólica tem sido vencida por um grupo claramente identificável de deuses, e é esse grupo que tem estabelecido o quadro de sentido no interior do qual o outro pode ser pensado – os deuses da razão, da autonomia da vontade, da subjetividade transcendental, abstrata, universal, individual. Nosso dever, como outros periféricos em relação à totalidade hegemônica estabelecida, é resistir, não nos deixarmos pensar, e construirmos novos quadros de sentido a partir dos quais sejamos capazes de pensar a nossa própria essência – inventando um novo espaço a ocupar e nos incluindo no quadro multipolar de culturas em nossos próprios termos.
Somente conseguiremos permitir a emergência de novas concepções de dignidade pessoal se abrirmos espaço para que elas se manifestem, abrindo mão das concepções que atualmente monopolizam o debate teórico e político. Para isso é necessário dar um passo em direção ao novo, superando o sentido estreito da teoria dos direitos humanos em prol de uma concepção mais ampla de eticidade intercultural dialógica. Se é verdade que o fundamento dos direitos humanos é uma “ética da insatisfação”, não há razão para nos satisfazermos com o seu próprio universalismo moral; é urgente a explosão dos muros da subjetividade transcendental, único modo de abrirmos o campo da autonomia moral à invasão de novas concepções de eticidade e dignidade pessoal. E isso significa também desistir da teoria dos direitos humanos tal como elaborada pelo racionalismo moderno.
É um passo difícil, esse a ser dado na direção do impensável. É como se largássemos a última tábua de salvação que nos mantém flutuando no mar de barbárie que nos circunda. Mas flutuar, só, não basta; a tábua nos impede de nadar. É preciso ter coragem de enfrentar a momentânea perda de sentido de nosso mundo, para que consigamos prosseguir em busca de outros novos; é preciso matar o Homem para que possamos ser homens.
Talvez a sobrevivência extemporânea da teoria dos direitos humanos reflita apenas a dificuldade do Ocidente de conviver com os seus próprios crimes, uma vez que tenham perdido o seu significado. Não é a barbárie futura o que tememos; ela já está entre nós, escondida nos interstícios do vazio sujeito transcendental. O que tememos é a perda de sentido da barbárie presente. Como acusa, novamente, o Montezuma de Calvino:
EU – Era tarde! Vós, astecas, é que deveríeis ter desembarcado perto de Sevilha, invadido a Estremadura! A história tem um sentido que não se pode mudar! 
MONTEZUMA – Um sentido que tu, homem branco, queres lhe impor! Do contrário o mundo desaba sob teus pés. Eu também tinha um mundo que me sustentava, um mundo que não era o teu. Eu também queria que o sentido de tudo não se perdesse.  
EU – Sei por que eras tão apegado a isso. Porque, se o sentido do teu mundo se perdesse, então as montanhas de crânios empilhados nos ossuários dos templos também não teriam mais sentido, e a pedra dos altares se tornaria uma bancada de açougueiro conspurcada de sangue humano inocente! 
MONTEZUMA – é assim que hoje tu, homem branco, enxergas as tuas carnificinas.
 
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